30 de outubro de 2013

A irritação


A cólera é uma breve loucura.
                                   Sêneca

A pessoa agressiva se sente agredida.

A pessoa irritada (colérica) é irritável (ultra-sensível, dolorosa, como uma pele irritada). A palavra “irritação” designa com muita propriedade e a um só tempo a cólera e o sofrimento.

A pessoa agressiva não pensa: “Eu sou agressivo”. Ela não sente sua própria agressividade, mas, em compensação, sente com grande intensidade a agressão do outro. É muito vulnerável.

A pessoa agressiva se sente agredida, isto é, mal-amada. Tem necessidade de ser amada, quer ser amada, acredita que seu direito de ser amada lhe é negado.

Por trás de toda agressão, esteja ela armada de conceitos e justificações, jaz a imensa angústia, a dor no coração da criança cujos choros não foram acolhidos. Encontre essa verdade em si mesmo.

A pessoa que se ama não tem “necessidade de ser amada”, reconhecida, valorizada, etc. O mundo não lhe recusa nada, não invade seu território. O mundo não lhe é agressivo a priori. Ela pode ser boa, generosa, amar de verdade.

O ódio é a tristeza acompanhada da idéia de uma causa externa.
                                                                                            Spinoza

A agressividade franca é sempre acompanhada do pensamento de que é o outro que nos agride. Quando sentimos nossa própria agressividade, é muito mais difícil ser agressivo.

Cada vez que você se sentir agredido ou ameaçado, observe atentamente o aspecto agressivo de seus próprios pensamentos e constate que ser agressivo e se sentir agredido são uma única e mesma coisa no espírito.

Por que, quando algo o deixa com raiva, você se prende a uma longa série de pensamentos de irritação em vez de um só?

Em vez de reagir com agressividade à agressão do outro, o indivíduo plenamente presente prova sua própria agressividade reativa. Assim, ele é capaz de sentir o outro que tem dentro de si, sentir o sofrimento, o sentimento que o outro tem de ser agredido. E exatamente o que ele próprio sente.

Por menor que seja o estado alerta de um indivíduo, ele é capaz de sentir em si o sofrimento daquele que agride. Então ele reage mais ao sofrimento de seu interlocutor do que à sua agressão.

O acusador se sente agredido sem sentir a própria agressividade. O agressor interpreta o mundo mais como hostil do que como sofredor. Tal interpretação o leva a fabricar um mundo efetivamente agressivo, já que a maioria de seus interlocutores tem uma reação agressiva à sua própria agressividade.

Só o sábio não reage. Ele sofre ao sentir o sofrimento do agressor: seu terror é ser preso na armadilha da hostilidade e não conseguir se desprender dela.

Um espelho que se reflete ao infinito em outro espelho, tal é a estrutura profunda da agressão.

O indivíduo alerta pode ter pensamentos agressivos, mas é capaz de reconhecê-los com clareza. Sabendo que são meros pensamentos, não se sente automaticamente obrigado a obedecê-los. E mais, o conhecimento que tem de seus próprios pensamentos de irritação permite-lhe compreender por empatia os pensamentos que o agressor emite em palavras ou em atos.

0 agressor, por sua vez, não vê seus próprios pensamentos. Não sabe se separar de suas emoções. Acha que o mundo hostil que projeta é real. Ao invés de se compadecer dos sofrimentos dos outros, imagina que são eles que se divertem com o seu, o que o deixa ainda mais raivoso. Então, embora seu primeiro movimento seja defensivo, ele se deleita com o sofrimento dos outros.

A virtude que permite controlar a irritação chama-se paciência.

A irritação é inevitável. Mas há duas maneiras de senti-la. Uma é acusando o outro por seu sofrimento e agredindo-o. A outra é reagindo à irritação com a benção do espaço e da compaixão:
— um espaço entre si e seus pensamentos; um espaço de respiração entre si e o outro, o espaço aberto pela ausência de reação; 
— compaixão por si mesmo, já que a irritação é um sofrimento; compaixão pelo outro já que sua raiva é uma dor.

Não há espaço sem compaixão, compaixão sem espaço.

Só quem se ama e se conhece pode amar e conhecer o outro e não mais agredir quando for agredido, encerrando assim o ciclo infernal da irritação.

O ignorante que não sabe se separar de seus pensamentos não é capaz de abrir espaço para a paz entre si e os outros. O espaço interno e o espaço externo têm exatamente a mesma natureza pacífica.

O ser consciente toma partido de cada irritação, desconforto, para progredir em seu autoconhecimento. Cada vez que sofre descobre uma nova zona de seu ego, um apego, uma imagem de si, um conceito (ilusório) do que as coisas deveriam ser.

O sofrimento é uma agressão a si mesmo. Toda agressão do outro é a contrapartida de um sofrimento do agressor. A agressão faz sofrer. A agressão sublinha a passagem do sofrimento.

A vítima e o carrasco queimam no mesmo inferno.

Sempre que você fica com raiva de alguém, cria um mundo de palavras duras, reprovações, cólera, sofrimento. Perde a indulgência que tem por si mesmo.

Sempre que fica com raiva, você se irrita contra uma projeção de seu próprio ego, uma pessoa ou uma situação que você forja. É o jogo de espelhos, a ilusão que o leva a lutar contra si mesmo.

Sempre que você fica com raiva, o orgulho, ou a cobiça, ou a irritação, ou a inveja, ou um veneno qualquer do espírito são estimulados em seu espírito. Você não deve responsabilizar uma pessoa de fora, mas tomar consciência de seu ponto fraco e observá-lo.

Só sofremos porque nos apegamos a algo. Mas podemos descobrir que aquilo a que nos apegamos é só um pensamento e que os pensamentos são como sonhos.

Nossa alma imóvel e luminosa projeta o mundo numa tela de ilusão.

Quando a raiva aumentar, lembre que você é o mundo e que, no fim das contas, é contra si mesmo que você está dirigindo sua raiva.

É a própria ignorância do vazio dos pensamentos que guia os dois representantes do sofrimento: a cobiça e a agressão.

É a própria inteligência do vazio que gera o espaço das relações pacíficas: o amor e a compaixão.

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O Fogo Liberador - Pierre Lèvy

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