26 de novembro de 2013

A acusação e a culpa



“Satã”, em hebraico, significa “o acusador, o caluniador”.

O diabo quer nos persuadir de que “a causa do mal” é sempre uma pessoa. Mas o diabo é a única causa do mal, uma causa que, justamente, não é ninguém, senão um mecanismo impessoal e enganoso que nos ilude, fazendo-nos crer que há sempre um culpado.

A origem de determinado sofrimento é uma série indefinida de atos mentais, verbais e físicos, sem falar da forma como milhares de pessoas, inclusive nós mesmos, se deixa afetar por esses atos e suas conseqüências. Então, a origem do sofrimento está por toda parte distribuída no tempo e no espaço.

A origem do sofrimento está em uma porção indefinida de atos e na forma como esses atos são transmitidos, traduzidos, transformados e recebidos. A origem do sofrimento não pode ser uma pessoa.

um erro pretender que uma pessoa seja a causa ou a origem de um sofrimento. Justamente o tipo de erro que só traz mais sofrimento, porque faz com que as pessoas detestem umas às outras (e o ódio é um sofrimento) e que se odeiem a si mesmas.

Quem se sente culpado pensa: “Eu sou a origem do mal. Meu ser é a origem do mal. Alguém sofre e eu sou a razão desse sofrimento”, ou então: “Transgredi o interdito, desobedeci, sou mau”. O sentimento de culpa é sempre uma depreciação, uma desvalorização do ser. É uma emoção triste, um ódio de si mesmo. Quando nos sentimos culpados, nos diminuímos, ficamos infelizes, sofremos, aumentamos nosso sofrimento.

O sentimento de culpa é uma acusação de si mesmo. Acusação e culpa são exatamente simétricas e vêm da mesma doença, da mesma obra do demônio.

A pessoa tomada pelo sentimento de culpa constrói em torno de si um mundo acusador ou um clima que leva os seres a se denunciarem, atribuindo a si mesmos a causa do mal... o que aumenta ainda mais o mal.

O sentimento de culpa, convencendo-nos de que merecemos o mal, nos faz perder as defesas e deixa o mal crescer às nossas custas. A acusação, fazendo-nos crer que o outro merece sofrer, deixa-nos anestesiados para o mal que cometemos.

Pergunta: você diz que é preciso se libertar da culpa. Que assim seja. Mas se as pessoas não se sentirem mais culpadas, será que vão parar de cometer o mal?

Resposta: por que o ser humano se aproveita de outro, usa-o como instrumento e o faz sofrer? Por prazer, poder, riqueza, consideração, ou por inveja, ciúme, orgulho, arrogância, etc. Em suma, cometemos o mal para alimentar o ego. Se as pessoas se amassem e se apreciassem por um direito hereditário inalienável, não se sentiriam mais tentadas a cometer tais atos, pois não teriam nenhuma dúvida
de que já têm e são tudo. O julgamento, seja para o bem ou para o mal, a acusação e a culpa são os principais fatores da insatisfação, do ódio de si e da vaidade do ego. São eles que desencadeiam as más ações. Para que as pessoas não cometam atos destrutivos, devem estar em contato com sua inesgotável riqueza interior, com a generosidade infinita de Deus, com sua própria força. Mas a culpa nos separa dela. A culpa então é um dos fatores que leva o ser humano a cometer o mal.

Toda exaltação da culpa, toda acusação, todo julgamento inferioriza o ser humano, escraviza-o, separando-o para sempre da força que, no entanto, o habita.

Os sábios, os santos, os seres alertas, completamente livres do ego e de toda limitação, superam a culpa e desprezam o recurso da acusação. Sua bondade radiante sustenta o mundo. Mais vale investir em um povo de seres alertas do que em um rebanho de seres escravizados. E o que fizemos até agora? Com que resultado?

Não acusemos, não julguemos, não condenemos. Toda essa história de bem e de mal só fomenta o círculo vicioso do sofrimento. Exerçamos, ao contrário, nossa capacidade de discernir o que nos faz sofrer ou não. É nesse quase nada que está quase tudo: a diferença entre a sabedoria discriminante e o julgamento.

Se vocês não são muito fortes, não deixem que as pessoas imersas no turbilhão auto-sustentado do sofrimento entrem em sua vida. Não deixem que elas tenham a menor influência sobre vocês. Recusem seu poder. Mas não as acusem. Elas são inocentes. Mesmo calculadoras, intrigantes e deliberadamente ardilosas, elas são inconscientes. Presas na mecânica da acusação e da manipulação, insensíveis a seu próprio sofrimento e ao dos outros, anestesiadas, elas se destroem. Mas não são “culpadas”.

Ê impossível nos conhecer e nos tornar quem somos, acreditando que somos (nosso si ou o de um outro, tanto faz) a causa do mal. Não se trata de um ato de fé, mas de uma experiência direta: devemos perceber distintamente tanto nossa completa inocência como a de todos os seres.

Ninguém é malvado, ninguém é culpado. Algumas almas, porém, estão quase totalmente recobertas por anjos parasitas que as sufocam, desviando em seu próprio benefício a energia divina, que é a essência da alma. Esses anjos parasitas são o ódio, a cobiça, a inveja, a arrogância, o medo, a preguiça, a culpa...

Todo ser é divino. Todos somos inocentes. Pobres de nós que um turbilhão de pensamentos, palavras e atos apoderou-se de tal modo de nosso ser que não conseguimos mais sair de um sistema auto-sustentado de sofrimento e de provocação de sofrimento.

Os anjos maus, ou demônios, são círculos viciosos emotivos, sentimentos que criam na alma um vício que os alimenta, armadilhas de sofrimento, mecanismos impessoais que alienam a liberdade humana e ocultam a luz.

Vivamos cada segundo com o sentimento vivo e pleno de nossa total inocência, assim como da inocência de todo ser humano.

Estamos no mundo para ter pena, cuidar, ajudar, isolar talvez, mas não para acusar.

Ninguém é malvado. Não há senão almas doentes.

Como tendência impessoal, o sentimento de culpa é um fator de sofrimento que deve, portanto, ser evitado. Não atribua culpa a você, nem aos outros. Desenvolva, ao contrário, o sentimento de responsabilidade. Sim, temos capacidade de romper o encadeamento das causas e dos efeitos. Sim, contribuímos para construir o mundo em que vivemos e podemos assim, na medida do possível, torná-lo mais belo, mais alegre, mais pacífico. Evitando, em especial, fomentar a acusação e a culpa.

Não há erro, julgamento, nem punição dos culpados. Simplesmente, os pensamentos, as palavras e os atos têm conseqüências.

Se as almas não fossem sempre puras e inocentes (mesmo quando sufocadas e obscurecidas pelos parasitas impessoais do mal), jamais seríamos capazes de perdoar. Recusar o perdão é deixar o ressentimento se incrustar na alma; é deixar-se sofrer ainda mais.

Aquele que perdoa é o primeiro beneficiário do perdão.

Um amigo que fora durante dez anos discípulo de Rav Kook, um dos principais mestres espirituais do judaísmo no século XX, me disse: “Em dez anos, nunca o ouvi falar mal de ninguém”.

Toda maledicência é uma blasfêmia, porque todos os nomes são nomes de Deus.

O maledicente, a maledicente têm um revólver na boca.

Extermine essa obsessão da crítica e da acusação que impede de escutar e compreender.

Só julgamos porque tememos sentir.

A crítica, ou melhor, a acusação, ou melhor ainda, o ódio, quase sempre quer fazer-se passar pela inteligência, sinceridade ou pela justiça.

Ressentimento, culpa e acusação são obras do demônio. Por trás de suas menores acusações, o “Grande Acusador” nos faz esquecer da essência divina.

A acusação e a culpa, duas faces do mesmo sofrimento, caluniam o ser profundo, o si, que é pura existência, luz, inocência.

O grande Acusador reina no mundo. Qualquer crítica, qualquer sentimento de culpa reforça seu poder.

Sua menor acusação adensa a obscuridade do mundo.

Sofrer é fazer Deus sofrer. Deus sofre ainda mais quando nos fazemos sofrer com a idéia de seu julgamento, de sua severidade. Seu desejo é que paremos de nos torturar com o julgamento. Cada vez que nos condenamos, é Ele que julgamos.

Deus jamais se satisfaz com um sofrimento que o atinge por excelência.
                                                                                            Raphaèl Cohen

A impossibilidade de se libertar dos mecanismos que provocam o sofrimento e a culpa que se segue são diabólicas.

A liberdade, a responsabilidade e a inocência são divinas.

Nem Deus nem o Diabo existem. A acusação, a culpa, o ressentimento e a ingratidão produzem o demônio. A paz, a inocência, a gratidão e o amor geram o divino.

O sarcasmo, a ironia, a crítica, a reprovação, a difamação, o desprezo, a maledicência aumentam o sofrimento, eis o mais fácil, eis a maior queda. É justamente porque ver as coisas tais como são, sob a luz implacável e panorâmica da sabedoria discriminante, que o ser nobre agradece, louva, aprecia, não aumenta o sofrimento.

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O Fogo Liberador - Pierre Lèvy

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