11 de setembro de 2013

A duplicidade


Uma nova definição do ego poderia ser: a mentira ou a duplicidade. Uma espécie de mecanismo reflexo começa insensivelmente a criar uma segunda realidade, a das aparências, daquilo que deveria ser, daquilo que não sou eu. De fazer crer a deixar crer, de deixar crer a crer, de crer a fazer, de fazer a mandar fazer... Umas das tantas maneiras de fugir da realidade e de não mais saber o que se sente. O grande mentiroso arrasta tudo o que há ao seu redor para um universo duplo, movediço, manipulado, enganoso.

Para o grande mentiroso, a realidade é antes uma matéria a se trabalhar do que um dado a se observar.

O ego é para o ser autêntico aquilo que o sistema da mídia é para a sociedade real. Acha que representa o todo quando não passa de um parasita da presença autêntica. Tal como a mídia, ele desperta a glória e a vergonha, a esperança e o medo e nos faz viver num magnífico palácio de imagens onde a existência é miserável.

Não estamos aqui na Terra para corresponder a uma imagem — a que temos de nós mesmos ou a que os outros têm de nós —, mas para dar e receber amor. Portanto, não usemos o mundo — os “olhares externos” — como um espelho que possa nos revelar nossa existência.

Você é como aquela pessoa que está sempre querendo imitar a imagem que o espelho lhe reflete.

O ego enreda-o em uma “identidade”. Mas o que é a identidade? Uma imagem que envenena a vida ao duplicá-la.

Que distância entre a desordem e a qualidade mutável de seu fluxo de experiência e a imagem ideal que você faz de si mesmo!

O ego é um signo que se mantém de signos, um parasita que sujeita a vida a um trabalho contínuo de produção de signos de prazer, felicidade, domínio, poder, reconhecimento, vantagem, etc.

Queria provar (para quem?) que eu era corajoso. Envolvi-me em situações muito difíceis, vendo-me sozinho contra todo mundo para mostrar que era corajoso. Por quê? Quem liga para isso? Tive uma vida difícil e cheia de conflitos. Forjei uma vida em que era possível me mostrar corajoso. Queria provar (para quem?) que eu era bom. Criei situações em que “salvava” os outros e nas quais ficava evidente que eu era bom, gentil. Na realidade, deixei-me iludir gravemente. Todos os acontecimentos de minha vida vêm desse debate estúpido que travo comigo mesmo. Por que atribuí tanta importância à idéia que forjei de mim mesmo? Ninguém está preocupado com isso, e eu poderia ter levado a vida de forma bem diferente. Em vez de existir simples, natural, alegremente, representei na cena do mundo o drama de meu ego e desperdicei minha vida.

Todo o sofrimento inútil vem das situações que as pessoas constroem por aceitarem a atividade absurda que o argumento do ego lhes impõe.

Para liberar-se da escravidão do ego, viva, cada segundo, no plano do fluxo da experiência real e deixe de se perder nas imagens que constrói de si próprio. A atenção ao instante, a vigilância que impede que o espírito se extravie nos pensamentos, a plena consciência do corpo vivo, a visão ampla das situações, a consideração sincera e aberta da existência real dos outros: umas das tantas formas de reduzir o império do ego.

Mais vale que as sensações desabrochem sozinhas do que duplicá-las, perturbá-las e recobri-las com nuvens de pensamentos. É aí que a duplicidade começa.

Você vive para contar o que faz para os outros, para si mesmo ou você simplesmente vive aqui e agora?

...
O Fogo Liberador - Pierre Lévy

Nenhum comentário:

Postar um comentário