5 de setembro de 2013

Problemas de matemática afetiva


Quando nascemos, herdamos problemas impessoais de matemática afetiva que devemos resolver em nosso íntimo.

Todos nós significamos uma porção de coisas para os nossos próximos. Coisas que não são "nós", mas que acabam sendo.

Pais e filhos, irmãos e irmãs, amigos e inimigos tecem inextricáveis labirintos de ambições, medos, culpas, rivalidades e lutos, por meio de suas identificações, projeções e reflexos.

Os nós do coração se complicam e se transmitem de uma alma para a outra, até que, por fim, um herói — nós, talvez — decide resolver o enigma e corta de vez o fio do sofrimento.

As pessoas são, umas para as outras, reflexos deformados de seu próprio ego.

Quis ser rico e assumi uma determinada caricatura de capitalista. Quis ser inteligente e vesti uma caricatura de gênio. Quis ser bom e me casei com uma caricatura de mulher angustiada. Todas elas eram projeções de meu ego. Mas se para mim este último corresponde a determinado aspecto de meu ego, para outra pessoa, provavelmente, ele corresponde a algo totalmente diferente. Devo compreender também que eu próprio, para os outros, sou uma projeção de seu ego e, até mesmo, uma projeção diferente para cada um deles. Jogo de ilusões. Quando nos dermos conta de tudo isso, conseguirmos ver tudo clara e distintamente, teremos ainda o direito de ficar bravos com alguém?

Todos os seres que encontramos “são”, na verdade, nós mesmos. Todos trazem uma parte essencial de nosso enigma, são telegramas cifrados, mistérios que temos de esclarecer para nos compreender e nos tornar quem de fato somos. Nossa mãe, nosso pai, nossos irmãos e irmãs, nosso companheiro, nossos filhos, amigos, colegas são uns dos tantos arcanos a desvendar, umas das tantas mensagens que nossa alma envia para si mesma. Cada um desses seres é nosso próprio ser. Eles nos constituem. Detêm o segredo de nossa identidade. E isso se estende a todo o universo: o lugar onde vivemos, nossa sociedade, nossa época. Eles nos criam e nós os criamos. Essa produção recíproca e paradoxal não deve ser entendida à maneira como o oleiro fabrica uma peça de cerâmica, mas antes à maneira como o sonhador fabrica o sonho que o faz sonhador.

Quem são todas essas pessoas que nós somos? No momento em que sonhamos, somos o sonho.

Há sempre no ambiente sinais de outras vias possíveis (pessoas, lugares, livros, palavras...) que podem nos ajudar a encontrar o caminho de nosso ser profundo. Ainda assim precisamos apreender esses sinais e seguir obstinadamente os fios que conduzem à saída do labirinto. Estaremos preparados para enfrentar situações perturbadoras?

O sofrimento físico nos adverte quase sempre de emoções ocultas: algo não vai bem. Estamos demasiado longe, ainda muito longe de nós mesmos.

O corpo sensível é um livro selado onde se inscrevem em caracteres cifrados sinais vindos de um mundo invisível.

Nosso corpo não cessa de nos falar. E ainda assim é preciso ouvi-lo.

As situações em que você está imerso assim como as pessoas que o cercam são como um segundo corpo, mais distante do que o corpo em carne e osso, mas tanto quanto revelador de seu estado de alma. Podemos ler em nosso mundo o reflexo baralhado, deformado, criptografado de nosso rosto interior.

Seu mundo representa seu coração em caracteres cifrados. Você pode se mudar, transformar sua situação familiar, trocar de emprego, fazer novos amigos, descobrir ambientes desconhecidos, abrir-se para interesses diferentes. Tudo isso, sem dúvida, contribuirá para sua metamorfose pois o mundo que o cerca modela e nutre a vida de sua alma. Mas nada disso servirá se você simplesmente transferir situações análogas para um outro lugar. É impossível fugir de si mesmo. Não tome o signo pelo que ele indica.

O ego reconstrói inexoravelmente o meio que o sustenta.

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O Fogo Liberador - Pierre Lévy

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