20 de agosto de 2013

Sentir


Uma onda arrebenta. Ela se dissipa em mil ondinhas, que, por sua vez, são encrespadas por mais outras mil microondinhas. Explode em miríades de gotas onduladas que refletem o desabamento da onda, uma fração de segundo — cada uma sob um ângulo diferente. A onda é, ela própria, uma ondinha da imensa onda da tempestade que contém milhares de ondas. Onda de ondas nas ondas. Onda de formas vivas, onda de povos e pessoas, onda de emoções e pensamentos. Abundância do mundo, magia dos fenômenos, a cada segundo.
Até mesmo os pensamentos são mágicos. As emoções, elas também, nascem, sobem, arrebentam, se dispersam e se reverberam para de novo aparecerem idênticas e diferentes. Contemple suas emoções, tristes ou alegres, como contemplamos o mar, como sentimos o vento. Os pensamentos só são venenosos se, em vez de prová-los, lhes obedecemos.

Viver as emoções significa provar bem clara e lucidamente, e nos mínimos detalhes, os acontecimentos de nossa experiência como ondas transitórias no fluxo da existência. Não acreditar um segundo sequer na realidade dos objetos que imaginamos suscitar essas emoções, nem na realidade do sujeito que deve experimentá-las. Diante de miríades de acontecimentos mentais, podemos congelar coisas, pessoas, significações, valores, um “eu”, e nos manter firmes no sofrimento. Mas podemos também, se seguíssemos o encadeamento apropriado, abandonar-nos lucidamente ao fluxo, à variedade das energias, ao caráter climático e instável da experiência.

Prefira sentir a textura, a qualidade, a intensidade das emoções a acreditar no que elas lhe representam. A emoção é perfeitamente real. O elo da emoção com seus objetos é que é ilusório. Você efetivamente deseja, mas não tem, de fato, necessidade do alvo particular de seu desejo. Está sem dúvida irritado, mas o objeto da irritação não é sua causa. Ao sentir a emoção, você está presente. Ao acreditar que ela o representa, fica preso na armadilha da ilusão, sonha, se ausenta.

No lugar de fugir do sofrimento, você pode senti-lo como uma energia. Do mesmo modo, tudo o que entra em seu mundo pode ser percebido como uma qualidade de energia em vez de um objeto de que se quer apropriar, rejeitar ou ignorar. Não há nem bem nem mal, nem belo nem feio. Cada ser, cada acontecimento interno ou externo é um comprimento de onda, uma freqüência, uma cor do espectro.

Durante muito tempo confundi o recalque com o autocontrole.

Quando o sofrimento aumenta, sinta-o aumentar. Quando a dor vem, deixe-a vir.

Sinta suas emoções aqui, agora, no presente. Não as reprima, não tente escapar delas, tampouco passe ao ato automaticamente. Isso seria mais uma tentativa de fuga.

Sinta a emoção integralmente. Permaneça nela. Não se refugie no pensamento (Não se pergunte por que ela dói, de onde vem, o que dói exatamente, como poderia parar, etc). Não aja para fugir da emoção (A maioria dos atos estúpidos acontecem quando fugimos de uma emoção desagradável: agredir para não sentir a raiva, pegar para fugir da cobiça ou do sentimento de falta, atordoar-se para esquecer da dor, etc).

Cruzo com um cachorro na rua. Tenho, em geral, medo de cachorro. Mas em vez de me deixar tomar pelo medo, acreditar em meu pensamento de medo e torná-lo real, posso reconhecer o medo como um pensamento apenas. Então, no lugar de tornar-me prisioneiro do medo, passo a observá-lo e prová-lo. Imagino que o cachorro virá me cheirar as panturrilhas, depois me morder. Sinto o medo como uma emoção rica e interessante, ao passo que teria podido sofrer de um medo que quer sempre parecer “objetivo”, “real”. Se em vez de dar crédito às nossas emoções, as observássemos com atenção, elas perderiam o poder que têm sobre nós. Não nos dariam mais medo (mesmo o medo não nos daria mais medo) e poderíamos acolhê-las, sem julgá-las nem reprimi-las. Quando deixamos de nos identificar com as emoções e com os pensamentos que julgamos, paramos de nos julgar. Quando paramos de nos julgar, fica mais fácil não mais julgar os outros, compreendê-los e ter uma atitude amigável em relação a eles. Ficamos livres para a percepção da beleza do mundo e do prazer de ser. Podemos provar as texturas da existência. Inclusive o medo.

Sinta as emoções positivas. Sem forçá-las, dê espaço para que possam emergir, aqui e agora, por quase nada. Um sopro de ar fresco, o encontro de um amigo, o choque de uma paisagem, a eclosão de uma idéia, um trago de vinho, o simples fato de viver e respirar. Isso não quer dizer que devamos esconder o rosto diante do mal ou da mediocridade da existência, mas, ao contrário, que podemos provar o que há de bom em cada situação. E sempre há algo de bom.

Não fuja das emoções positivas — o amor, a alegria, a ternura, o reconhecimento —, porque elas são o sal da vida, a felicidade. Deixe-as crescer, desabrochar, prove-as. Com grande freqüência, mais do que vivê-las no presente, costumamos nos lembrar delas no passado, ou então projetá-las no futuro, esquivá-las na corrida, escamoteá-las na precipitação, afogá-las em infinitas preparações, neglicenciá-las na distração. Depois, mais tarde, arrependemo-nos de não ter aproveitado o momento de prová-las plenamente. E é assim que passamos ao largo da vida.

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O Fogo Liberador - Pierre Lévy

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