20 de agosto de 2013

Um só coração para todos os humanos


A raiz do mal é uma espécie de preguiça de existir e de sentir. Um pavor de entrar em contato com a própria luz. Uma fuga do instante. Querer fugir do momento, ou manipular a existência, adquire duas formas lógicas: desejar o que não se tem e rejeitar o que se tem. Eis os dois venenos do espírito: a cobiça e a agressão, o desejo e a cólera.
Mas note que ambos decorrem do veneno original, o “primeiro motor” do mal: a intenção de se ausentar, a recusa de sentir o que se tem presente. É em consequência dessa recusa que começamos a ler as energias da vida como irritação e falta, problemas a resolver, e que a existência passa a ser uma corrida desvairada fora do instante, uma sede infinita, um querer viver que nada mais é do que um querer morrer. E assim nos tornamos mortos-vivos.

A cobiça e a agressão resultam de uma só intenção: a de fugir do sofrimento.

Só paramos de (nos) fazer mal, se (nos) sentimos.

Se nos identificamos com nossa sensibilidade no instante, abrandamos ao mesmo tempo nossa cobiça por todos os objetos. Com efeito, o cobiçoso imagina que será saciado pelo objeto de seu desejo, mas, no instante (isto é, na realidade), ele é torturado pela sensação de falta. Em vez de sentir que está se prejudicando, ele espera. Não percebe que a esperança é um veneno.

Se sentimos, ficamos conscientes, somos capazes de ver, não ficamos, portanto, ameaçados, nem precisamos ser agressivos. Mas o insensível, por causa de sua anestesia, vê-se no escuro, não sabe, não sente o que o atinge. Tem medo, e é por isso que tudo o irrita. Na realidade, é o próprio medo que o faz sofrer.

A insensibilidade, a indiferença, a anestesia representam a pobreza absoluta, já que anulam todas as riquezas. A ausência transforma tudo o que toca em chumbo. A sensibilidade e a abertura, por sua vez, são a riqueza absoluta já que exaltam e dão sentido a todas as outras riquezas. O amor transforma tudo o que toca em ouro.

Só sofremos de uma coisa: da incapacidade de amar.

Não ser capaz de amar, isto é, de amar a si mesmo, de amar o instante, de amar o mundo e os outros tais como são. É porque “não amamos” as coisas tais como são que nos dedicamos à cobiça e à agressão.

O que é um malvado? Uma pessoa que não ama ninguém. É porque não ama que faz os outros sofrerem. É porque não se ama que não ama ninguém. Quando nós, pessoas comuns, amamos isto e não aquilo, estamos amando apenas uma parte de nós mesmos, e esse desequilíbrio nos envolve numa queda sem fim.

Amar, ser compassivo, é sofrer do que o outro sofre. O malvado foge do sofrimento, não quer sentir. Foge assim do sofrimento do outro. É por isso que pode lhe fazer mal. A insensibilidade, ou a indiferença, é a essência da maldade, assim como a de todos os males.

Não amar, fazer sofrer, sofrer, eis a condição do insensível, daquele que foge justamente da própria sensibilidade para não sofrer!

Amar é o verdadeiro prazer. Estar na terra e caminhar sem conseguir amar é o sofrimento supremo. Os malvados sofrem por não amar. Sofrem por fazerem mal.

Odiar é um sofrimento em si. Ser insensível é o pior dos sofrimentos, é ser um morto-vivo, não saber apreciar as coisas tais como são, não desfrutar da vida no que ela tem de mais maravilhoso: o amor.

Os malvados, os arrogantes, os orgulhosos estão tão longe da alma! Seus corações estão debaixo de um bloco de concreto. Como eles sofrem!

O maior sofrimento é estar fora da luz, fora do amor, da sensibilidade. O maior sofrimento é ser malvado. É, portanto, pelos malvados que devemos ter mais compaixão.

O desejo de jamais fazer sofrer, nem você nem os outros, o amor universal, eis o despertar, o fim do sofrimento.

O paradoxo está no fato de que o fim do sofrimento passa pelo despertar da sensibilidade, pelo desenvolvimento da compaixão, isto é, pela abertura ao sofrimento e à alegria universal.

Os sábios não se servem dos loucos para sofrerem. São compassivos e não vítimas. É justamente por serem sensíveis que não se prendem facilmente às armadilhas dos insanos. Estas só mordem as carnes anestesiadas.

Pouco me importa que você seja vencedor. Pouco me importa que você seja sábio. Pouco me importa que você tenha razão. Pouco me importa que você seja rico, poderoso, célebre ou que colecione títulos. Meu coração quer encontrar o seu coração.

Tantas pessoas mentiram para nós. Mentimos tanto também. Tudo o que construímos com palavras estava errado pois não era o coração que falava.

Aceite ser só sensibilidade. Toda sensibilidade. Só poderá conquistar o sofrimento se dele parar de fugir.

Você ainda tem de progredir na exposição, na abertura, no desnudamento de seu coração.

A meditação nos ensina a ser só sensibilidade.

Desenvolvendo a sensibilidade que temos por nós mesmos, aprendemos a nos conectar com a alma, a nos amar. Sentimo-nos ser.

Deus é a sensibilidade porque Deus é o ser. Estando continuamente atentos à delicada sensibilidade do corpo e do coração, a cada segundo, aprendemos a nos unir a Deus e a todos os seres.

Quanto mais somos sensíveis, mais nos tornamos sensíveis aos outros. No limite, o despertar da sensibilidade nos faz ver claramente a interdependência e a confluência de todas as sensibilidades. Ela nos conduz necessariamente ao amor universal. Participamos todos da mesma luz, do mesmo amor, da mesma sensibilidade impessoal.

Somos todos vítimas dos venenos do espírito que obscurecem o espírito de uma pessoa. Somos todos beneficiários do despertar que uma pessoa atinge. Porque não existe senão uma única luz.

Há duas maneiras de encarar a interdependência e a relação recíproca. De fora, pelas considerações ecológicas, econômicas ou sistêmicas. De dentro, pela sensibilidade à sensibilidade, pela compaixão, pela experiência que participamos todos da mesma luz. Pelo amor.

Só há um único sofrimento, um só coração que arde: o Sagrado Coração de Jesus, o coração de Avalokiteshvara, o Bodhisattva da compaixão. Um só coração dilacerado por toda a humanidade, que sente todos os sofrimentos, que experimenta o único e supremo sofrimento de todos os seres. Nossos corações são fragmentos deste último. Juntos formam um só coração. Temos todos o mesmo coração.

Somos compassivos, sensíveis ao sofrimento do outro. Somos tão sensíveis à sua sensibilidade quanto somos sensíveis à nossa, porque, e só porque, somos sensíveis à nossa. Então, o outro e “si” somos um só, intercambiáveis. Eis o amor. Existe uma profunda continuidade entre todos os seres sensíveis. As sensações morrem e renascem, os pensamentos morrem e renascem, o ego morre e renasce.
Mas a mesma sensibilidade atravessa todas as vidas, todas as existências e não morre. Partilhamos todos da mesma luz: “sentir-se viver” e, em seu brilho, nenhum ser morre realmente. Quanto à continuidade essencial de tudo o que vive e sente, os limites de “si” são ilusórios. O outro sou eu. Eis o amor. A luz onde se alimenta toda consciência, toda sensibilidade, também é o amor infinito, já que, por ela, a grande corrente da vida é indivisível, por ela, todas as sensibilidades confluem: cumpassion. É o próprio princípio da existência: eis o amor.

Do centro ardente de seu coração espalhe alegria e felicidade a todos os seres sensíveis. Mas nem por isso vá se esquecer de lavar a louça.

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O Fogo Liberador - Pierre Lévy

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